quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Álvares de Azevedo : Lágrimas de sangue



Ao pé das aras no clarão dos círios 
Eu te devera consagrar meus dias; 
Perdão, meu Deus! perdão 
Se neguei meu Senhor nos meus delírios 
E um canto de enganosas melodias 
Levou meu coração! 
Só tu, só tu podias o meu peito 
Fartar de imenso amor e luz infinda 
E uma Saudade calma; 
Ao sol de tua fé doirar meu leito 
E de fulgores inundar ainda 
A aurora na minh'alma. 
Pela treva do espírito lancei-me, 
Das esperanças suicidei-me rindo... 
Sufoquei-as sem dó. 
No vale dos cadáveres sentei-me 
E minhas flores semeei sorrindo 
Dos túmulos no pó. 
Indolente Vestal, deixei no templo 
A pira se apagar - na noite escura 
O meu gênio descreu. 
Voltei-me para a vida... só contemplo 
A cinza da ilusão que ali murmura: 
Morre! - tudo morreu! 
Cinzas, cinzas... 
Meu Deus! só tu podias 
À alma que se perdeu bradar de novo: 
Ressurge-te ao amor! 
Malicento, da minhas agonias 
Eu deixaria as multidões do povo 
Para amar o Senhor! 
Do leito aonde o vício acalentou-me 
O meu primeiro amor fugiu chorando. 
Pobre virgem de Deus! 
Um vendaval sem norte arrebatou-me, 
Acordei-me na treva... profanando 
Os puros sonhos meus! 
Oh! se eu pudesse amar!... - É impossível! 
Mão fatal escreveu na minha vida; 
A dor me envelheceu. 
O desespero pálido, impassível 
Agoirou minha aurora entristecida, 
De meu astro descreu. 
Oh! se eu pudesse amar! 
Mas não: agora 
Que a dor emurcheceu meus breves dias, 
Quero na cruz sangrenta 
Derramá-los na lágrima que implora, 
Que mendiga perdão pela agonia 
Da noite lutulenta! 
Quero na solidão - nas ermas grutas 
A tua sombra procurar chorando 
Com meu olhar incerto: 
As pálpebras doridas nunca enxutas 
Queimarei... teus fantasmas invocando 
No vento do deserto. 
De meus dias a lâmpada se apaga: 
Roeram meu viver mortais venenos; 
Curvo-me ao vento forte. 
Teu fúnebre clarão que a noite alaga, 
Como a estrela oriental me guie ao menos 
Té o vale da morte! 
No mar dos vivos o cadáver bóia - 
A lua é descorada como um crânio, 
Este sol não reluz: 
Quando na morte a pálpebra se engóia, 
O anjo se acorda em nós - e subitâneo 
Voa ao mundo da luz! 
Do val de Josafá pelas gargantas 
Uiva na treva o temporal sem norte 
E os fantasmas murmuram... 
Irei deitar-me nessas trevas santas, 
Banhar-me na frieza lustral da morte 
Onde as almas se apuram! 
Mordendo as clinas do corcel da sombra, 
Sufocando, arquejante passarei 
Na noite do infinito. 
Ouvirei essa voz que a treva assombra, 
Dos lábios de minh'alma entornarei 
O meu cântico aflito! 
Flores cheias de aroma e de alegria, 
Por que na primavera abrir cheirosas 
E orvalhar-vos abrindo? 
As torrentes da morte vêm sombrias, 
Hão de amanhã nas águas tenebrosas 
Vos rebentar bramindo. 
Morrer! morrer! 
É voz das sepulturas! 
Como a lua nas salas festivais 
A morte em nós se estampa! 
E os pobres sonhadores de venturas 
Roxeiam amanhã nos funerais 
E vão rolar na campa! 
Que vale a glória, a saudação que enleva 
Dos hinos triunfais na ardente nota, 
E as turbas devaneia? 
Tudo isso é vão, e cala-se na treva - 
Tudo é vão, como em lábios de idiota 
Cantiga sem idéia. 
Que importa? quando a morte se descarna, 
A esperança do céu flutua e brilha 
Do túmulo no leito: 
O sepulcro é o ventre onde se encama 
Um verbo divinal que Deus perfilha 
E abisma no seu peito! 
Não chorem! que essa lágrima profunda 
Ao cadáver sem luz não dá conforto... 
Não o acorda um momento! 
Quando a treva medonha o peito inunda, 
Derrama-se nas pálpebras do morto 
Luar de esquecimento! 
Caminha no deserto a caravana, 
Numa noite sem lua arqueja e chora... 
O termo... é um sigilo! 
O meu peito cansou da vida insana; 
Da cruz à sombra, junto aos meus, agora 
Eu dormirei tranqüilo! 
Dorme ali muito amor... muitas amantes, 
Donzelas puras que eu sonhei chorando 
E vi adormecer. 
Ouço da terra cânticos errantes, 
E as almas saudosas suspirando, 
Que falam em morrer... 
Aqui dormem sagradas esperanças, 
Almas sublimes que o amor erguia... 
E gelaram tão cedo! 
Meu pobre sonhador! aí descansas, 
Coração que a existência consumia 
E roeu um segredo! ... 
Quando o trovão romper as sepulturas, 
Os crânios confundidos acordando 
No lodo tremerão. 
No lodo pelas tênebras impuras 
Os ossos estalados tiritando 
Dos vales surgirão! 
Como rugindo a chama encarcerada 
Dos negros flancos do vulcão rebenta 
Gotejando nos céus, 
Entre nuvem ardente e trovejada 
Minh'alma se erguerá, fria, sangrenta, 
Ao trono de meu Deus... 
Perdoa, meu Senhor! 
O errante crente 
Nos desesperos em que a mente abrasas 
Não o arrojes p'lo crime! 
Se eu fui um anjo que descreu demente 
E no oceano do mal rompeu as asas, 
Perdão! arrependi-me!



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